Litoral

Mulher trans relata ter o rosto queimado com colher e apanhado ao se assumir para a mãe


Naomi Marques, de 43 anos, fala sobre a resistência de ser uma mulher transexual no Brasil, e do preconceito que enfrenta até hoje. Naomi Marques, de 43 anos, já descobriu o preconceito dentro da própria casa, quando ainda era adolescente
Arquivo Pessoal
A maquiadora Naomi Marques, de 43 anos, já descobriu o preconceito por ser diferente dentro da própria casa, quando ainda era adolescente. Ela é uma mulher transexual, e teve a orientação sexual descoberta pela mãe quando ainda era jovem. Naquele dia, apanhou e teve a pele do rosto arrancada com uma colher quente.
Moradora de São Vicente, no litoral de São Paulo, Naomi relembra que, desde os 7 anos, já se sentia um menino diferente dos demais. “Eu já tinha trejeitos, gostava de andar com meninas, brincar com bonecas, de casinha, de usar roupas e sandálias femininas. Gostava mesmo era do universo feminino”, conta. Conforme foi crescendo, também passou a se sentir atraída por meninos.
A maquiadora conta que foi a segunda filha de sua mãe, mas que o primeiro filho precisou ser doado a uma família adotiva, por falta de apoio do companheiro e de condições financeiras naquela época. Depois, a mãe voltou a se relacionar com o pai de Naomi, e ela nasceu, mas o casal voltou a se separar, e ela nunca mais teve contato com o genitor.
Anos se passaram, e ela continuava a se sentir diferente. Ainda não tinha malícia alguma, mas seu jeito já chamava a atenção de muitas pessoas. Quando tinha entre 14 e 15 anos, se assumiu gay à mãe, mas foi expulsa de casa. Naquele dia, ela foi espancada e teve o rosto queimado com uma colher quente.
“Ela disse que, se fosse para ter um filho gay, que seria com o rosto marcado. Tive queimaduras graves no rosto. Eu fui torturada pela minha mãe simplesmente pela questão de ser quem eu sou. Eu era o segundo filho dela, então, ela não aceitava. Eu fui abusada pelo meu padrasto diversas vezes, então, foi muito difícil. Morei na rua, usei droga, me prostituí para sobreviver, e já dormi até no lixo”, diz.
Naomi fala sobre luta contra o preconceito e sonho de não ser apontada na rua
Arquivo Pessoal
Naomi conta que sofreu muito, principalmente porque estava acostumada a ter “o aconchego de uma casa”. Quando criança, teve tudo o que sempre quis, incluindo estudo nas melhores escolas e todos os brinquedos que pediu.
Durante a vida nas ruas, ela também chegou a morar na casa de uma ex-prostituta, onde precisava pagar para dormir.
“Ela tinha um coração espetacular, e sempre me disse que aquele não era o meu caminho, o das drogas. Até que, um dia, fui adotada por uma travesti, que me resgatou desse mundo em que eu vivia, das drogas, do crack, da cocaína. Eu fui ao fundo do poço, passei anos sem contato com a minha mãe. Depois desse período ruim, minha vida teve outro seguimento, me iniciei no candomblé e entendi o que era amor materno. Fiz minhas plásticas e viajei para o exterior. Morei na Europa por anos”, relata.
Naomi voltou ao Brasil, e em 2007 se tornou ‘mãe de santo’, abrindo seu primeiro terreiro de candomblé em São Vicente. Passaram-se mais de 15 anos, até que, um dia, a irmã mais nova dela resolveu procura-la, e elas conseguiram se rever. “Em dezembro de 2017, uma entidade espiritual disse para eu visitar minha mãe, antes do ano acabar, ‘para eu não chorar depois’“, conta.
Quatro dias depois, ela foi à casa da mãe e levou mantimentos para a ceia de Natal da família. Quando a mãe a viu, elas se abraçaram, depois de tantos anos. “Tiramos a nossa primeira foto juntas. Ela me pediu perdão, e disse que me amava. Me chamou de filha pela primeira vez. E eu perdoei, porque o perdão é magnifico e te reconstrói. Foi um momento muito importante para mim”, relembra emocionada.
Pouco depois, ainda na madrugada do Natal de 2017, a mãe de Naomi enfartou e morreu. Apesar da dor, a maquiadora conseguiu ressignificar muitas coisas em sua vida. Hoje, ela afirma que aprendeu a se amar como é, e a não deixar de batalhar pela igualdade no Brasil.
“Ser transexual no Brasil é resistir todos os dias. É perigoso, doloroso. A nossa imagem é vendida de forma muito errada, como se todas fôssemos apenas ladras, prostitutas, pessoas ruins. Eu sonho em andar na rua e ser livre, sem as pessoas me apontarem ou me julgarem. Ser vista como alguém comum, porque o mais difícil é lidar com o preconceito. Todos os dias, somos obrigadas a mostrar à sociedade que não somos monstros”, conclui.
Primeira foto de Naomi e a mãe, após muitos anos sem se falarem e se verem
Arquivo Pessoal
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