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Apenas 2% das prisões em flagrante em SP tiveram perícia para avaliar possível violência policial em março de 2021, diz Defensoria


Com suspensão de audiências de custódia durante a pandemia, CNJ orientou que laudo do IML com foto fosse apresentado no auto de prisão, a fim de documentar eventuais indícios de tortura. Imagem ilustrativa de detento, em foto de arquivo.
Reprodução/TV Globo

Um relatório da Defensoria Pública aponta que apenas 2% das prisões em flagrante realizadas em São Paulo durante a pandemia tinham laudos de perícia que pudessem indicar possível violência policial no momento da prisão.
Os dados foram compilados pelos núcleos de Situação Carcerária e Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria de São Paulo, que analisaram 602 autos de prisão em flagrante realizados em março de 2021 na capital paulista e na Baixada Santista.
“A falta de um sistema efetivo de realização do exame de corpo de delito no momento da prisão em flagrante é um ‘aval’ para tortura policial, para obtenção ilícita de indícios e para a forja de flagrantes”, diz o relatório.
A ausência de laudos do Instituto Médico Legal (IML) nos processos contraria uma recomendação de 2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Questionada sobre o relatório, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que “todos os protocolos e exigências constitucionais são seguidos criteriosamente nas ações de polícia judiciária” (leia mais no final da reportagem).
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Após a suspensão das audiências de custódias por conta da pandemia, o CNJ orientou que “o exame de corpo de delito seja realizado na data da prisão, complementado por registro fotográfico do rosto e corpo inteiro, a fim de documentar eventuais indícios de tortura ou maus-tratos.”
A audiência de custódia é garantida no Brasil desde 2015. Ela consiste na apresentação da pessoa presa, em até 24 horas, à presença de um juiz, de um integrante do Ministério Público e da Defensoria Pública (ou de seu próprio advogado). A intenção é verificar a legalidade da prisão e garantir os direitos do preso.
De acordo com a Defensoria, as audiências são um importante instrumento de combate à tortura. Para o órgão, sua ausência prejudica os fluxos de apuração de casos de prisões ilegais.
“A grande vantagem da audiência é que tem que ser realizada em até 24 horas, então se há marcas de violência, elas ainda estão lá. Sem esse contato pessoal, a gente fica só com a versão da polícia. Muitas vezes a pessoa está com medo, mas o defensor percebe e consegue pensar em meios de prosseguir com a denúncia”, diz Fernanda Balera, defensora pública do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos.
Os defensores dos núcleos especializados resolveram fazer o relatório após a constatação de que a orientação sobre as perícias não estava sendo respeitada.
“Tudo começou quando recebemos uma provocação, de um processo que veio sem laudo. E aí descobrimos que isso tinha virado uma regra. Não dava para fazer audiência por causa da pandemia, mas o exame poderia suprimir. Então percebemos que nem isso estava sendo feito. Não tem controle nenhum”, afirma Balera.
Dados do estudo
O levantamento da Defensoria analisou autos de prisão em flagrante de duas regiões de São Paulo: capital e Baixada Santista (que abrange as comarcas: Bertioga, Cubatão, Guarujá, Praia Grande, Santos e São Vicente).
Foram verificados 602 autos de prisão em flagrante, sendo 318 da Capital e 284 da Baixada Santista.
Na Baixada Santista, em apenas 1% dos casos o laudo do IML foi incluído na data da apresentação do auto de prisão em flagrante. Na capital, isso aconteceu em 2% dos casos.
A pesquisa também acompanhou se os laudos foram inseridos no processo posteriormente ao flagrante, a pedido dos juízes. Na capital, isso aconteceu em 13%, e na Baixada Santista, em 8%.
Nos casos em que o laudo foi apresentado na capital, apenas 8% possuíam registro fotográfico da pessoa presa, conforme recomendação do CNJ. Na Baixada Santista, a porcentagem foi de apenas 5%.
Dos casos que apresentaram laudo, foram identificadas lesões em 33% das pessoas presas na capital. Na Baixada Santista, o percentual foi de 30%.
Para Fernanda Balera, o alto índice de identificação de lesões corporais nos casos em que os laudos foram realizados indica a possível subnotificação de situações de violência policial.
“Nos poucos laudos que foram realizados, tem um índice expressivo de lesão corporal. É importante fazer esse acompanhamento, se não há apagamento ao longo do processo.”
O que dizem os órgãos
Uma das conclusões do documento é que os órgãos de segurança pública e do sistema de Justiça são corresponsáveis pela não aplicação das normas já existentes de garantia de direitos das pessoas presas.
“A responsabilidade é de todos os atores, porque não houve cobrança efetiva de ninguém. Quando a prisão é ilegal, o defensor precisa atuar mais ativamente. Também se espera que, não tendo laudo, o juiz cobre. Que o Ministério Público cobre a polícia. Tudo já está normatizado, mas o sistema não está funcionando. Falta fiscalização daqueles que têm o dever legal de agir”, diz Balera.
A recomendação feita à própria Defensoria feita pelo relatório é que a coleta de dados e a análise dos fluxos processuais que envolvem a prisão em flagrante sejam práticas frequentes, e não pontuais.
O g1 procurou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, o Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça para comentar o relatório.
Em nota a SSP afirmou que “todos os protocolos e exigências constitucionais são seguidos criteriosamente nas ações de polícia judiciária”.
“O exame de corpo de delito de pessoas presas em flagrante é realizado nas próprias dependências do Fórum, onde fica o médico legista de plantão, quando da apresentação para audiência de custódia, respeitando-se o prazo de 24 horas após a prisão. Nas situações em que não houve audiências de custódia, os exames seguiram outro procedimento. Antes de recolher os presos ao cárcere, a PC os submete a exames de corpo de delito, ‘ad cautelan’, nas dependências do IML, que tem 30 dias de prazo para confecção dos laudos”, diz a pasta.
“O artigo 8º, em seu parágrafo 1º, inciso 2º da citada Recomendação, é explícito em orientar que o exame de corpo de delito seja realizado pelos profissionais de saúde, complementado por registro fotográfico do rosto e corpo inteiro. Portanto, em todas as prisões de flagrante, nas quais não se dera o arbitramento de fiança, expediu-se requisição para submeter o detento a exame de corpo de delito.”
Já o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que “divulgou a seus magistrados e servidores a Recomendação CNJ nº 62/20, com as diretrizes a serem adotadas nas audiências de custódia durante a pandemia.”
O órgão disse ainda que é “importante destacar que as decisões são proferidas individualmente, de acordo com os documentos dos autos e respeitada a independência funcional do magistrado. É obrigatória manifestação prévia de representantes do Ministério Público e advogados ou defensores públicos, que zelam pela legalidade do ato e que, em caso de discordância, podem se valer de recursos e reclamações perante as instâncias ou tribunais superiores.”
O Ministério Público de São Paulo informou que “as prisões em flagrante vêm sendo analisadas por meio das comunicações feitas ao MPSP e ao próprio TJSP.
“No Fórum Criminal da Barra Funda existe um Posto do IML exatamente para agilizar a elaboração das perícias médicas e a sua juntada aos autos. Todavia, neste período de pandemia, determinou-se o fechamento dessa unidade do IML, o que de fato prejudica a persecução penal. Mas vários outros elementos de provas são coletados e analisados para a formação da convicção do promotor de Justiça, como a inquirição dos envolvidos, apreensões de objetos nos locais dos delitos, juntada de documentos, relatórios policiais e de investigação criminal”, diz a procuradoria.
“Vale ressaltar que, diferentemente da opinião da Defensoria – sim, trata-se de mera opinião , o MPSP vem cumprindo fielmente a sua atribuição constitucional de fiscalizar a atividade policial, baseando a sua atuação, marcada pela objetividade e não pela estridência, no cumprimento da lei. Foi a partir de proposta do MPSP, por exemplo, que a Secretaria da Segurança Pública criou recentemente a Comissão de Monitoramento da Letalidade Policial no Estado de São Paulo.”
O CNJ não respondeu até a publicação desta reportagem.
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