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‘Minha mãe foi cortesã e não me envergonho’


Manish Gaekwad escreveu seu livro com base nas memórias contadas pela mãe dele. A obra oferece ao leitor uma visão surpreendentemente honesta da vida de uma cortesã indiana em meados do século 20. Rekhabai, em foto da década de 1990, em Calcutá, na Índia
MANISH GAEKWAD
“Eu dançava no escuro. Costumava iluminar o salão com velas e me apresentar. No escuro, meu naseeb [destino] iria brilhar.”
O ano era 1962. A Índia e a China haviam entrado em guerra por uma disputa de fronteira e o governo indiano havia declarado estado de emergência nacional.
O medo assolava as pessoas. Sirenes de alerta e apagões que duravam dias tornaram-se parte da vida diária. O futuro parecia incerto.
Mas Rekhabai não deixava o medo de morrer ditar o seu destino.
Em vez de se fechar em casa como as outras cortesãs (mulheres artistas), ela vestia um belo sári, noite após noite, cantando e dançando para grupos de homens que vinham assistir às suas apresentações no kotha – uma palavra em idioma hindi que designa o local onde as dançarinas profissionais se apresentavam para os homens ou, até mesmo, um bordel.
Sua vida havia lhe ensinado que as dificuldades, muitas vezes, eram o caminho da oportunidade – ou, pelo menos, da sobrevivência.
A conturbada vida de Rekhabai agora é tema de um livro, intitulado The Last Courtesan – Writing My Mother’s Memoir (“A última cortesã – escrevendo as memórias da minha mãe”, em tradução livre). O autor é seu filho, Manish Gaekwad.
“Minha mãe sempre quis contar sua história”, afirma Gaekwad. Ele não sente vergonha nem constrangimento por narrar a história como ela aconteceu. Depois de viver com a mãe no kotha até o final da adolescência, a vida de Rekhabai não tem segredos para ele.
“Crescendo no kotha, a criança observa muito mais do que deveria”, ele conta. “Minha mãe sabia e não sentia necessidade de esconder nada.”
Gaekwad escreveu seu livro com base nas memórias contadas por sua mãe. A obra oferece ao leitor uma visão surpreendentemente honesta da vida de uma cortesã indiana em meados do século 20.
As cortesãs – também chamadas de tawaifs, na cultura popular indiana – já existiam desde cerca do século 2 a.C. no subcontinente indiano, segundo Madhur Gupta, dançarina de Odissi – dança típica do leste da Índia – e autora do livro Courting Hindustan: The Consuming Passions of Iconic Women Performers of India (“Cortejando o Hindustão: as paixões que consumiam emblemáticas mulheres artistas da Índia”, em tradução livre).
“Elas eram mulheres artistas, cuja função era oferecer entretenimento e prazer à realeza e aos deuses”, segundo Gupta.
Até o domínio britânico, as cortesãs indianas eram consideradas artistas respeitadas. Elas eram profundamente qualificadas nas suas artes, ricas e apadrinhadas por alguns dos homens mais poderosos da sua época.
O filme indiano Gangubai Kathiawadi é baseado na vida das cortesãs do país.
BHANSALI PRODUCTION
“Mas elas também enfrentavam a exploração nas mãos dos homens e da sociedade”, afirma Gupta.
A cultura das cortesãs na Índia começou a declinar quando os britânicos criaram leis destinadas a restringir essa prática. Eles as consideravam dançarinas ou profissionais do sexo.
O seu status caiu ainda mais depois da independência da Índia em 1947, quando muitas cortesãs foram forçadas e prostituir-se para sobreviver. A prática extinguiu-se por completo, mas as histórias de cortesãs famosas e suas vidas fascinantes foram perpetuadas em livros e filmes.
Uma dessas histórias é exatamente a de Rekhabai.
Ela nasceu em uma família pobre na cidade de Pune, no oeste da Índia. Era a sexta de 10 irmãos. Rekhabai não se lembra exatamente da data ou do ano, pois sua noção de tempo é nebulosa.
Cansado de gerar cinco meninas, seu pai, embriagado, teria tentado afogá-la em um lago quando ela nasceu.
Com nove ou 10 anos de idade, Rekhabai casou-se para liquidar uma dívida da família. Mais tarde, ela foi vendida pelos sogros para um kotha na região de Bowbazar, em Calcutá, no leste do país.
Rekhabai ainda não era adolescente quando começou a aprender a cantar e dançar, para se tornar tawaif. Mas sua vida e seus ganhos eram controlados por uma mulher da família que também era cortesã no mesmo local.
Durante a guerra sino-indiana de 1962, essa mulher saiu do kotha e Rekhabai teve a chance de assumir sua própria vida. Suas apresentações à luz de velas a ajudaram a ganhar independência e a fizeram perceber que ela podia ser sua própria provedora e protetora, se tivesse coragem suficiente.
Este princípio a orientaria pelo resto da vida.
Liberdade e conflitos
O kotha da Casa do Congresso Nacional Indiano em Mumbai (oeste da Índia), na década de 1980
MANISH GAEKWAD
Ao contrário das personagens famosas dos filmes de Bollywood, como Umrao Jaan e Pakeezah, Rekhabai nunca desejou ter um homem.
Ela decidiu não se casar novamente, apesar de ter uma longa lista de protetores que a cortejavam. Seus pretendentes variavam de pequenos criminosos até ricos xeques e músicos renomados, mas casar-se significaria deixar sua vida de tawaif e deixar o kotha.
Ironicamente, o kotha – o pequeno espaço no qual ela se apresentava, morava, criava seu filho e onde abrigou diversos familiares, em diferentes épocas – tornou-se seu símbolo de liberdade e poder.
Ainda assim, o kotha também era um espaço repleto de conflitos e dificuldades, onde as circunstâncias destruíam a inocência, eliminavam a humanidade e evocavam emoções destrutivas, como raiva, medo e desespero.
No seu livro, Gaekwad narra algumas lembranças profundamente perturbadoras contadas por sua mãe, como o caso em que um marginal sacou uma arma para atirar em Rekhabai por ter se recusado a se casar com ele.
Em outro ponto, Rekhabai relembra o abuso que sofreu de outras cortesãs, com ciúmes do seu sucesso. Algumas tentaram intimidá-la contratando gângsteres para ficar à espreita no lado de fora do seu quarto, enquanto outras a chamaram de prostituta – o que não era o caso.
As cortesãs foram retratadas em diversos filmes indianos de Bollywood
GETTY IMAGES
Mas o kotha também formou a mulher determinada que ela acabaria se tornando. Foi ali que Rekhabai descobriu seu talento de dançarina e o poder que ela exercia sobre os homens que procuravam escapar das suas próprias inseguranças ou do tédio e da melancolia da vida.
Foi no kotha que ela aprendeu a ler os homens pela forma como eles a tratavam e a aplacar os egos quando necessário – ou despedaçá-los, se eles ameaçassem destruir o seu próprio.
“Eu dominava a linguagem do kotha. Eu tinha que falar quando era necessário”, ela conta.
Mas, ao lado daquela artista charmosa, esperta e exuberante, o kotha também viu Rekhabai transformar-se em uma mãe coruja, intensamente protetora, que fazia tudo ao seu alcance para dar uma vida melhor para o seu filho.
Quando Manish Gaekwad era bebê, ela o mantinha ao seu lado no kotha. Rekhabai relembra como ela corria para ver como estava a criança entre cada apresentação, se achasse que havia ouvido seu choro.
Mais tarde, ela o mandou para um internato e comprou um apartamento, para que ele pudesse convidar seus amigos para passar a noite sem constrangimentos.
Rekhabai se orgulhava pelo homem que seu filho se tornou, embora o ensino médio em inglês e a criação mais refinada do internato tenha feito com que ele ficasse diferente dela de muitas formas.
Ela relembra uma história encantadora, quando seu filho a visitou nas férias da escola e pediu garfo e colher para comer.
“Eu conhecia o garfo [kaanta, em hindi], mas nunca havia ouvido aquele nome em inglês antes [fork]… Precisei ir ao mercado comprar quando você explicou [o que era aquilo]”, conta ela no livro.
No final dos anos 2000, a cultura das cortesãs havia desaparecido por completo. Rekhabai deixou o kotha para viver no seu apartamento em Calcutá. Ela morreu em Mumbai, no oeste da Índia, em fevereiro.
Gaekwad conta que irá admirar sua mãe para sempre, com sua coragem, seu talento e seu gosto pela vida.
“Espero que os homens leiam este livro.” Segundo ele, os homens indianos têm essas “noções sobre a figura materna, de que ela precisa ser um modelo de pureza”.
“Mas espero que este livro ajude as pessoas a identificar a individualidade das suas mães e aceitar quem elas são como pessoas, independentemente do seu relacionamento conosco”, conclui Gaekwad.

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