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A fumaça não nos deixa ver o céu, nem respirar direito

Em noites insones, leio as manchetes dos jornais que encontram-se disponíveis, enquanto aqueles que puderam descansar, ainda dormem. Atualizo as mensagens dos grupos de ativismo social e ambiental dos quais sou membro. O gentil e sereno Ὕπνος (Hypnos, sono), que adormece a todos os mortais, parece ter-me esquecido. Encontro consolo na companhia de sua mãe, Νύξ (Nyx, a noite) e de seu pai, Ἔρεβος (Erebos, a escuridão). Da varanda olho o céu que, comumente estrelado, está encoberto de uma névoa, cuja cor sem nome, impede a presença do brilho das estrelas.

“É a fumaça, não consigo ver o céu”, penso. Pela manhã, cenário idêntico. Da janela, observo a névoa amarelada, suja, que há semanas persiste. Na rua, pessoas tossem, olhos lacrimejam, muitas usam máscara. Ouvi de alguém, que o pôr do sol alaranjado, estava lindo. Tive vontade de pular em seu pescoço e, entre um tabefe e outro, fazê-lo entender que, se continuar “alaranjado, lindo assim”, em alguns dias ele ou alguém próximo, será internado com alguma doença respiratória. Enquanto escrevo, leio que a cidade onde moro, aquela cuja garoa inspirou canções como São Paulo da Garoa (Tonico e Tinoco) e Êh São Paulo (Alvarenga e Ranchinho) apresenta umidade inferior ao deserto do Saara.

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Em agosto de 2023, estudando documentos produzidos por grupos de especialista da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), escrevi a coluna “Você está preparado para enfrentar o verão de 2024 com temperaturas superiores aos 50 °C na sua cidade?” anunciando que temperaturas dignas de Ἥφαιστος (Hefesto, deus do fogo) fariam parte de nossas vidas. Leio, em redes sociais, que a ministra Marina Silva participou 2° Seminário Desafios da Federação com o tema “Caminhos para a Construção do Federalismo Climático no Brasil”, um evento importante que pretende levar para todas as esferas de governo. Interessante.

É possível que nos próximos anos, um relatório bacana tenha sido produzido e que servirá para fundamentar, de alguma forma, os impactos que, a ausência de projetos de ações conjuntas e imediatas dos entes federativos para barrar os incêndios criminosos, causaram na vida de todo o planeta terra. É claro que ela não preside o país. Saímos de um governo cuja presidência era regida por um nefasto ambiental, para a de outro que, na qualidade de viajante contumaz, vive da lembrança de políticas ambientais de governos anteriores, quando, o Brasil, liderava a partir de políticas e ações pautadas mais em fatos e, menos, em falácias.

Na coluna escrita em novembro de 2022 intitulada “Lembram-se do ‘blá, blá, blá’ da jovem ativista Greta Thunberg?”, comentei sobre a atuação lenta dos líderes internacionais nas ações relacionadas à redução do aquecimento global. Aparentemente, o jargão bla´, blá, blá, instalou-se nas três esferas de governo confortavelmente.

Nos grupos de ativismo ambiental, acompanho as batalhas diárias daqueles que, como eu, não conseguem convencer os governos estaduais e municipais sobre a importância de manter áreas vegetadas e permeáveis no meio da cidade. Por um lado, em ano eleitoral, o asfalto é recapeado mais uma vez, guias são pintadas de branco e postes recebem nova pintura. Árvores dão lugar a calçadas com tapumes e betoneiras, transformando espaços públicos em depósitos particulares a céu aberto de empreiteiras, numa demonstração de absoluto descaso.

Por outro lado, conscientes da urgência climática, pessoas comuns criam corredores ecológicos com atuação simples, embora trabalhosa: compram-se mudas de árvores e as plantam em calçadas com o objetivo de conectar áreas arborizadas existentes em praças, parques e canteiros viários, formando uma trama verde que visa melhorar a qualidade de vida e a saúde de todos.

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Reduzir a temperatura nas ruas com a sombra futura das árvores, captar a água da chuva mantendo o solo permeável para infiltração, ampliar a captura de carbono com o plantio de novas árvores, melhorar a umidade do ar aproveitando o processo de evapotranspiração das plantas (algo que aprendemos na escola, quando crianças) e fornecer alimento para os passarinhos, aqueles que, felizes em sua algazarra, insistem em nos acordar com o primeiro raio de sol, atualmente encoberto por fuligem, para se alimentar das espécies que produzem frutinhos da região.  Especialmente escolhidas para eles.

Numa pesquisa rápida, identifico o que estou respirando e compreendo a razão do meu mal-estar: material particulado (partículas microscópicas de poeira, fuligem, fumaça e outros materiais que, ao serem inaladas, podem causar problemas respiratórios e cardiovasculares). As principais fontes desses materiais são veículos a diesel, indústrias, queima de biomassa e construção civil. Há também o ozônio, um gás formado pela reação de outros poluentes na presença da luz solar, que causa irritação nos olhos e nas vias respiratórias, além de agravar doenças respiratórias.

O dióxido de nitrogênio, emitido principalmente por veículos a diesel e algumas indústrias, contribui para a formação de ozônio e material particulado, além de irritar as vias respiratórias. O monóxido de carbono, gás incolor e inodoro produzido pela queima incompleta de combustíveis fósseis, pode ser fatal em altas concentrações. E há ainda o dióxido de enxofre, emitido pela queima de combustíveis fósseis e alguns processos industriais, que contribui para a formação de chuva ácida e pode causar problemas respiratórios. Por fim, os compostos orgânicos voláteis, substâncias químicas presentes em diversos produtos como tintas, solventes e combustíveis, contribuem para a formação de ozônio e podem ter efeitos tóxicos à saúde.

Não é desesperador?

Somados a esses poluentes, as queimadas e os incêndios florestais, que emitem grandes quantidades de material particulado, gases tóxicos e gases de efeito estufa, reduziram a umidade do ar, ampliaram a estiagem e provocaram secas. Nem Ἀχελῷος (Aqueloo, deus grego que personifica rios e riachos que fluem pela Terra) consegue entender a ganância de empresas e a indolência de governos. Com a floresta amazônica, o Pantanal e o Cerrado em chamas, estamos objetivamente, matando o deus grego e caminhando para um país em que a fertilidade e à abundância proporcionadas pelas água doce deixarão de existir.

Sinto-me imersa em uma distopia ambiental, na qual governos e empresas optam por manter um processo econômico típico dos anos de desenvolvimento desenfreado, em que biomas inteiros são degradados e seres humanos são destruídos, servindo aos interesses do capital e ignorando as consequências devastadoras para o planeta e as futuras gerações. O Nevoeiro de Stephen King e as imagens de Mad Max, de George Miller, McCarthy e Lathouris, estão se tornando realidade em cerca de 60% do território brasileiro. E não para por aí: nos próximos dias, exportaremos a fumaça proveniente de terras brasileiras para nossos vizinhos uruguaios e argentinos.

Θάνατος (Thánatos, a morte), irmão do sono, parece ter despertado, assustado, com a ampliação do número de mortes não naturais, causadas pela névoa sufocante que vem rondando as ruas e os pulmões daqueles que ousam respirar. Embora responsável por conduzir as almas dos mortos ao submundo, reino de Hades, não preparou-se para mortes previstas por cientistas há décadas. Enquanto isso, empresas e governos, cegos para a saúde da população que os elegeu como seus representantes, mantém-se gananciosos e indiferentes tecendo cuidadosamente, a mortalha que vestiremos num futuro breve.

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