Conheça a história de um homem que teve o sonho americano interrompido por causa do racismo
‘O Sonho Americano’: Jornal Nacional desembarca em Detroit, no Michigan, um dos berços da cultura e da música negra nos Estados Unidos. O Sonho Americano: JN conta histórias de racismo e resistência da população negra nos EUA
A viagem especial do Jornal Nacional pelos Estados Unidos desembarca em Detroit, no Michigan – um dos berços da cultura e da música negra no país. Uma cidade marcada pelo racismo, um tema que mobiliza os eleitores americanos. O Felipe Santana vai contar essa história nesta sexta-feira (1º).
O discurso mais famoso de Martin Luther King foi na capital, Washington, em que ele diz: “Eu tenho um sonho”. O sonho dele era que uma pessoa não fosse julgada pela cor da sua pele. Mas a primeira vez que ele proferiu esse discurso foi em Detroit, o grande centro do movimento pelos direitos civis.
Na época em que ele fez o discurso, um hotel poderia simplesmente não receber uma pessoa negra. Um restaurante poderia fechar as portas para uma pessoa negra. Um negro não podia entrar no mesmo banheiro que entrava um branco.
Depois de 246 de escravidão nos Estados Unidos, foram mais 100 anos de segregação racial legitimada pelo Estado, através de leis. Como as fotos dessa época são em preto e branco, parece que faz muito tempo. Mas não faz. Só acabou um ano depois do discurso de Martin Luther King, em 1964. Muita gente que conversou com a equipe do Jornal Nacional viveu essa época. E para muita gente, a segregação nos Estados Unidos nunca terminou. Como mostra o episódio desta sexta-feira (1º) da série “O Sonho Americano”.
O que você consegue fazer em 46 anos de vida? Foi o tempo que Richard Phillips ficou preso.
“De repente, você não vê mais seus filhos e sua mulher por quase meio século. É muito tempo”, diz.
Richard Phillips ficou preso injustamente por 46 anos
Jornal Nacional/ Reprodução
Ele foi preso por causa de um Mustang laranja. A história do crime a gente vai conhecer neste episódio da série “O Sonho Americano”.
Detroit, Michigan. Richard Phillips voltou com o Jornal Nacional ao bairro em que viveu quando criança. A casa não está mais ali.
“Minha mãe alugava um quarto em uma pensão. Mas a proprietária deixava meu irmão e eu dormirmos no sótão. Ela ganhava US$ 8 por dia. Era difícil sustentar dois filhos assim”, conta Richard.
Richard Phillips largou a escola antes de completar o ensino médio. Mas, enquanto estudava, descobriu que tinha um talento.
“Eu conseguia digitar 80 palavras por minuto”, lembra.
Foi assim que ele conseguiu o emprego na grande indústria de Detroit daquele tempo. Virou auxiliar administrativo em uma montadora de carros.
“Eles pagavam bem. Eu nunca pensei que eu, um menino do gueto, poderia viver com o dinheiro do meu trabalho”, diz.
Richard Phillips ficou preso injustamente por 46 anos
Jornal Nacional/ Reprodução
Richard Phillips casou, teve dois filhos e, aos 22 anos, gostava de festa. Era um momento em que Detroit fervia, alimentada com o dinheiro das montadoras de carro e o calor da luta pelos direitos civis.
O prédio que foi demolido em 2023 era um lugar histórico para Detroit, principalmente para a cultura negra americana. No andar de baixo, tinha um restaurante, um bar, uma pista de dança e um palco para shows. No andar de cima, quartos que você alugava por hora – um motel. Foi lá, no 20 Grand Motel, que os Estados Unidos viram nascer um dos maiores movimentos da música do século XX: Motown.
Temptations, Marvin Gaye, Stevie Wonder… Todas essas estrelas começaram tocando lá. Esses artistas depois ganharam a TV e viraram ícones do movimento civil contra o racismo. Mas, para Richard Phillips, a festa terminou ali, no 20 Grand Motel.
“Eu estava com um amigo que tinha roubado uma loja em um Mustang laranja. A polícia apareceu e me levou preso com ele”, conta.
Na delegacia, o dono da loja tinha que reconhecer o ladrão.
“Ele disse: ‘É o número quatro’. Adivinha quem era o número quatro? Eu. E eu nunca tinha visto aquele cara na minha vida”, afirma.
Richard sabia que não poderia entregar o amigo ou morreria na hora em que saísse dali. Mas nunca deixou de dizer que era inocente. Quando já cumpria a pena, o mesmo amigo botou a culpa nele por um assassinato que tinha cometido. Richard pegou prisão perpétua.
Na cadeia, trabalhava fazendo placas de carros para o Estado. Ganhava US$ 4 por dia, o suficiente apenas para comprar seus produtos de higiene.
Nos Estados Unidos, os presos trabalham, e muitas cadeias são privadas. Elas funcionam como negócios, em que os donos vendem o trabalho dos presos, pagando muito pouco. Isso foi legalizado pela 13ª Emenda da Constituição americana. A mesma que proíbe a escravidão. É porque ela diz assim:
“A escravidão e o trabalho involuntário estão proibidos, a não ser pelo pagamento de um crime”.
A probabilidade de um afro-americano ser preso é cinco vezes maior do que a de um branco nos Estados Unidos. E para oito a cada dez negros, o sonho americano simplesmente não existe. Porque, para eles, o sonho de igualdade – como dizia Martin Luther King – não se mostra no dia a dia. Por isso, também, a população negra é a que menos sai de casa para votar, já que o voto nos Estados Unidos não é obrigatório. Apenas 42% votaram nas últimas eleições para deputado e senador.
Nas últimas eleições presidenciais, em 2020, 92% dos eleitores negros votaram no candidato democrata Joe Biden. Foram essenciais para a vitória dele em estados importantes – como Geórgia, Pensilvânia e no Michigan.
Com uma candidata negra, o Partido Democrata pretende energizar esses eleitores. Muitos dizem que vão sair e votar por causa dela. Mas ela não tem tanto apoio quanto o primeiro presidente negro da história, Barack Obama. Porque alguns eleitores pensam que, por ser filha de imigrantes, não teve a experiência negra americana como tiveram George Floyd ou Richard Phillips – que viu 46 anos de vida passarem atrás das grades.
Na cadeia, Richard Phillips descobriu um novo talento: ele pintou tudo o que sentia lá dentro
Jornal Nacional/ Reprodução
Só que na cadeia, ele descobriu um novo talento: ele pintou tudo o que sentia lá dentro. Até que, em 2017, um grupo de defensores públicos resolveu investigar o caso dele e comprovaram o que ele vinha dizendo por 46 anos: que Richard Phillips não matou ninguém; que era inocente.
“Preferiria morrer na prisão a confessar um crime que não cometi”, afirma.
Richard Phillips ganhou uma indenização milionária do Estado e hoje vive da arte. Os 46 anos de vida não voltarão, mas Richard não se tornou amargo.
“Eu tento não viver no passado”, diz.
Ele se junta ao rol dos artistas negros americanos que, apesar de viverem diariamente o racismo, há décadas repetem a mensagem de esperança e de fé no futuro.
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