Novo grande romance latino-americano é de um espanhol – 17/12/2024 – Ilustrada
Existem muitos concorrentes ao posto de “grande romance latino-americano”. Não basta apenas ser um romance sobre a nação: precisa explodir as fronteiras e tentar articular os desafios e dilemas, dramas e dores, desse nosso continente como um todo. Quais seriam?
“Cem Anos de Solidão” só poderia ter acontecido na Colômbia; “Grande Sertão: Veredas” poderia ter acontecido entre vaqueiros e jagunços de qualquer país, mas não teria como ser escrito em outra língua. Por outro lado, “Nostromo” se passa num país fictício e “Os Passos Perdidos”, em um país sem nome. Quem se arriscaria a tentar entrar nesse time? Nos últimos anos, só “2666” esteve em consideração.
Pois o romance “Nem Mesmo os Mortos”, que sai agora no Brasil pela DBA, é o mais recente entre os fortes candidatos.
O autor, Juan Gómez Bárcena, não é latino-americano, mas espanhol. Pode um europeu escrever o “grande romance latino-americano”?
Bem, talvez o primeiro forte candidato a esse título tenha sido escrito por Joseph Conrad, um polonês radicado no Reino Unido. Seu “Nostromo”, de 1904, retrata o país fictício de Costágua, explorado por europeus e envolto em revoluções.
Não por acaso seu “O Coração das Trevas”, em que o tenaz marinheiro Marlowe busca pelo enlouquecido e carismático Kurtz, certamente foi uma referência importante de Bárcena.
O título do romance, “Nem Mesmo os Mortos”, vem de uma famosa citação de Walter Benjamin: se o inimigo vencer, e ele não para de vencer, nem mesmo os mortos estarão a salvo, pois a história será reescrita, as lutas, apagadas, e os derrotados, esquecidos.
Na verdade, essa é justamente a missão do protagonista Juan de Toñanes, ex-conquistador e agora dono de taberna no México do século 16: encontrar o índio Juan, que andava sublevando o campo e incomodando os poderosos, para, digamos, apagá-lo da história. Mas Juan não se deixará nem apanhar nem apagar tão facilmente.
“Nem Mesmo os Mortos” é uma viagem alucinante e alucinógena pelos dilemas desse nosso continente tão injusto e desigual, desde a escravidão quinhentista até a crise dos imigrantes não documentados de Donald Trump.
Sempre em direção ao norte e sempre a duas semanas de seu objetivo, o Juan perseguidor atravessa milhares de quilômetros e centenas de anos buscando o outro Juan, através de um México de pesadelo que representa o melhor e o pior da América Latina como um todo.
À medida que o perseguidor avança, o perseguido, um proteico Kurtz indígena, vai se metamorfoseando em novos e inesperados personagens do nosso continente, positivos e negativos, divinos e sórdidos, do padre ao revolucionário, do bandoleiro ao cafetão, do operário ao industrial, cada nova encarnação sempre interessante, hipnótica, dona de sua própria voz.
Às vezes, o Juan perseguidor não sabe se combate ou se junta ao perseguido. Outras vezes, não sabe se também não se transformou nele. Nós também não.
Cabe um elogio ao trabalho de Silvia Massimini Felix, uma de nossas mais prolíficas tradutoras de literatura hispânica. Especialmente nas últimas partes, quando o romance chega ao presente, suas soluções para as falas orais em “espanglês” são sempre engenhosas.
Também vale mencionar que outro sério candidato a “grande romance latino-americano”, que comparte com “Nem Mesmo os Mortos” a estrutura de uma busca, foi relançado esse ano em excelente nova tradução: “Os Passos Perdidos”, de Alejo Carpentier, pela editora Zain.
Apesar de quase perfeito, o final de “Nem Mesmo os Mortos” não poderia deixar de ser a parte mais fraca. Pois a busca de Juan por Juan, como qualquer jornada mítica, poderia continuar indefinidamente, o perseguidor sempre um passo atrás e o perseguido transformando-se em novos arquétipos latino-americanos que ainda nem existem.
Qualquer final de romance interminável será sempre arbitrário e forçado. “Nem Mesmo os Mortos” merecia ser um daqueles livros infinitos, que seus autores passam a vida escrevendo e reescrevendo, adicionando novas epígrafes e novos capítulos, até que morrem e os deixam perfeitos e inconclusos.
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